CONVERSAS DO ALÉM

290. CONVERSAS DO ALÉM

O CEMITÉRIO DA LOMBINHA DA MAIA É ESTRANHO. Já em 2011 o observei conforme dei conta no meu livro ChrónicAçores: uma circum-navegação vol. 2, como adiante se transcreve. Hoje, assisti de novo à cena, desta vez um jovem agarrado às grades, do lado de fora, e a falar ao telemóvel…falaria com alguém lá de dentro..leiam…

100.3. CONVERSAS DO ALÉM JULHO 2011

Há tempos fiquei menente[1] quando me disseram que um falecido, na vizinha Lombinha da Maia, pedira para ser enterrado com o seu inseparável telemóvel.

O homem sem pitafe[2] algum viera da Amerca[3], ali da antiga Calafona[4], e queria estar contactável mesmo para lá do grande túnel luminoso.

Qual não foi o meu espanto, num alpardusco[5] de camarça[6], ao transitar pelo cemitério já encerrado a visitas, e ver três pessoas do lado de fora das grades do cemitério falando com alguém e usando os seus telemóveis ou celulares bem encostados ao ouvido. Uma delas, tinha uma mão nas grades e na outra segurava o aparelho. Não tinha tarelo[7] nenhum. Não querendo ser lambeta[8], interroguei-me “Estaria a falar com o falecido, que nascera empelicado[9]?” Será que o finado atendeu do lado de lá dentro do seu caixão de mogno envolto na “Stars and Stripes” à prova de leiva[10] ou continuaria na sua eterna Madorna[11]? Teria acendido um palhito[12]para ver quem lhe ligava?

De que falariam? Que mexericos trocavam? Lamentar-se-iam da falta que lhes fazia ou estariam a queixar-se da carestia de vida? Que palavras trocariam que não tivessem já comunicado? Que faltara dizer?

Estariam a queixar-se da sorte caipora[13] dos herdeiros ou a culpá-los pela caltraçada[14] criada pelo inexistente testamento? Teriam sido vizinhos de ao pé da porta[15]? Falariam do gado alfeiro[16] sem touro de cobrição?

Talvez dum derriço duma filha numa constante arredouça[17], às fiúzes[18] do namorado da cidade? Eu ia ficar a nove[19] mas tratando-se de gente rural podia augurar que os vaqueiros se preocupassem mais com subsídios e vacas.

Não devem escalar grandes cumes culturais ou espirituais. Pressuponho ser esse o jaez da conversação. Não creio que pedissem aconselhamento para as eleições legislativas dali a seis semanas nem tampouco lamentassem a falta delas.

Quem sabe que lastimavam? Falariam, talvez, de mordomos, impérios e festas que isso, sim, seria assunto da maior relevância local, que o melhor da festa é esperar por ela, mas mais apropriado para se discutir à mesa, sem ninguém a atramoçar[20], com uns calzins[21] de abafado[22] até se ficar meio piteiro[23]. Uma pessoa interroga-se sobre a possibilidade de duração infinita das baterias do aparelho no esquife. Seria a solução para tantos escritores e outros que se separam dos leitores sem tempo de dizerem um último adeus, escreverem a última frase de um livro, acenarem com um novo projeto ou retificarem qualquer coisinha. Seria a forma inédita de poderem continuar a comunicar com aqueles que ficam facilmente órfãos de autores que os acompanharam nesta digressão terrena. Admiro-me que as companhias de telecomunicação não tenham inventado uma bateria de longa duração que não precise de ser carregada debaixo de terra e permita acesso ilimitado, a troco de uma conveniente taxa vitalícia, aos que os deixaram já no meio duma amizade, dum amor, duma relação, duma paixão. Seria, decerto, um êxito comercial se viesse com a possibilidade de personalização do aparelho. Quem sabe o que se evitaria de dores incompletas, de saudades por mitigar, de conversas inacabadas? Novos planos poderiam surgir em operadoras de telemóveis. Um tema a merecer estudos futuros…[24]

Para o Diário dos Açores (desde 2018) Diário de Trás-os-Montes (desde 2005) e Tribuna das Ilhas (desde 2019)

Chrys Chrystello, Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713 / AU 3804 [Australian Journalists’ Association] MEEA/AJA]

[1] Menente, espantado, estupefacto (São Miguel)

[2] Pitafe, defeito, atribuído quer a pessoas, quer a objetos. Nódoa na reputação.

[3] Amerca, corruptela de América, ou Nova Inglaterra por oposição ao outro grande polo de emigração, a Califórnia

[4] Calafona, Califórnia, na estropiação dos emigrantes de antigamente

[5] Alpardusco, o mesmo que alpardo, crepúsculo, lusco-fusco (São Miguel)

[6] Camarça, tempo húmido (São Miguel)

[7] Tarelo, juízo, tino (São Miguel)

[8] Lambeta, intrometido (São Jorge)

[9] Empelicado diz-se de pessoa afortunada, usado na frase nascer empelicado (Terceira)

[10] Leiva, designação dada a formações de musgo de várias espécies Sphagnum, abundante na parte alta das ilhas. No Corvo é o musgo, nas Flores musgão, no Faial tufos. Nome da urze, Calluna vulgaris, usada em S. Miguel na preparação do solo das estufas dos ananases.

[11] Madorna, sono leve, sonolência, torpor

[12] Palhito, o mesmo que fósforo (Terceira)

[13] Caipora, de qualidade inferior, reles. Sorte caipora: que pouca sorte, sorte maldita (São Miguel)

[14] Caltraçada, confusão, mixórdia, trapalhada

[15] Vizinho do pé da porta, o mesmo que vizinho do portal da porta, que mora nas redondezas de uma casa (vizinho de ao pé da porta em São Miguel)

[16] Alfeiro, gado bovino que não dá leite, por exemplo de uma vaca que não apanhou boi, e que, por isso, não dá leite. Gado alfeiro sem touro de cobrição (in Cristóvão de Aguiar)

[17] Arredouça, confusão, desordem

[18] Fiúzes (São Miguel) ou às fiúzas de, à custa de, viver à custa de outrem (Terceira)

[19] Ficar a nove, não entender nada do que ouviu.

[20] Atramoçar, aborrecer, interferir com, maçar (in Cristóvão de Aguiar) (São Miguel)

[21] Calzins, pequeno copo, geralmente destinado a beber aguardente ou bebidas finas

[22] Abafado, O vinho abafado é um vinho tradicional dos Açores, constituindo uma tradição na costa norte de São Miguel, onde a abundância de pomares e a produção frutícola excedentária é frequentemente aproveitada para a feitura de licores, vinhos abafados e compotas. No caso dos vinhos abafados, trata-se de um género vinícola com elevado teor alcoólico cuja fermentação é interrompida através da adição de aguardente ou álcool, permanecendo mais ou menos doce (uma vez que o açúcar natural da uva não se transformou em álcool). Transformação licorosa do típico vinho de cheiro micaelense. O abafado é considerado o vinho do Porto dos Açores, em resultado de um processo de laboração que dispensa o recurso a corantes ou conservantes. (São Miguel)

[23] Piteiro, aquele que bebe muito (Terceira, Flores)

[24] (texto revisto por e dedicado ao Dr. J. M. Soares de Barcelos, autor de Dicionário dos Falares dos Açores (ed. Almedina 2008), por me fazer sentir menos estrangeiro

uma placa para a campa de TURLU

Liduino Borba
36 mins

POR TERRAS DO CANADÁ
UMA PLACA PARA A CAMPA DA TURLU
geral@liduinoborba.com

A Turlu – Maria Angelina de Sousa – a maior improvisadora dos Açores, nasceu na Canada da Francesa (em frente ao Guarita da Terra do Pão), freguesia de São Mateus, ilha Terceira, no dia 5 de novembro de 1907 e faleceu em Toronto, Canadá, no dia 5 de janeiro de 1987. Casou-se em 1927 com Francisco Teixeira Borges, de quem enviuvou em 1971. Casou-se com o Charrua no dia 8 de dezembro de 1973, na igreja paroquial de São Mateus.
Foi mais de uma dúzia de vezes cantar à América e Canadá. Ganhou o primeiro prémio e medalha de ouro, com o respetivo diploma, no Torneio de Poesia Popular, realizado no ano de 1934, no Teatro Angrense.
A Turlu começou a dizer cantigas com a idade de sete anos. Porém, só se estreou a cantar aos quinze anos, na freguesia de S. Bartolomeu, com o falecido improvisador António Dias. Compôs imensos «enredos» para danças e publicou pequenos opúsculos sobre vários casos passados na ilha Terceira.
Esta cantadeira era dotada de uma intuição natural, que se reflete na rusticidade e no realismo das suas expressões.
No ano de 1974, seguiu na companhia do marido – o Charrua – para Toronto, Canadá, onde viveu até ao seu falecimento, em 1987.
No dia 21 de novembro de 1981, realizou-se uma grande cantoria de despedida à Turlu e ao Charrua, no grande Salão da Igreja de Santa Helena, em Toronto. Em 28 de Agosto de 1983, foi realizada também uma grande cantoria e festa de despedida ao casal, na antiga Praça de Toiros de São João, em Angra do Heroísmo.
Como se disse, Turlu, faleceu no dia 5 de Janeiro de 1987 e foi sepultada no dia 7, em Holy Cross Cemetery, situado em 8361 Yonge Street, Thornhill, Ontário, L3T 2C7, Toronto, Canadá, na Secção 22, Série 58, e Sepultura 73, sem qualquer placa identificativa, apenas o número 73 referido, muito pouco para a “rainha” do Improviso dos Açores, parecendo como que abandonada ao seu destino.
Foi essa injusta falta de identificação da sepultura que foi agora corrigida por pessoas de boa vontade, todas residentes no Canadá. Manuel Tomás, improvisador, e Johny Homem, da J H Productions, meteram mãos à obra e, com o patrocínio de Luís Manuel Dias, colocaram uma PLACA IDENTIFICATIVA na campa da Turlu. Agora sim sabemos onde está sepultada a “Rainha da Cantoria”.
Tudo isto culminou com uma homenagem à grande improvisadora, junto da sua campa no referido cemitério, no dia 12 de maio de 2019. A homenagem foi prestada com uma cantoria junto da sepultura, pelos improvisadores Armindo Amarante e Manuel Tomás, acompanhados pelos tocadores António Ferreira e António Silva.
Esta fase está muito bem resolvida. A seguinte seria a trasladação do corpo para o cemitério da sua freguesia de São Mateus, mas só com o apoio de entidades oficiais.
Que descanse em paz.

Casa da Terra Alta, São Mateus, 27 de setembro de 2019.

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