10º galope luis filipe sarmento

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10º Galope

Sim à noite ouvem-se vozes de todos os tipos de todas as latitudes como se o inferno existisse nesta região da cidade e murmuram dores e desejos lancinantes nessa solidão de multidões que não se vêem apenas se escutam atemorizadas como nas prisões dos ditadores e elas não sabem mas estão prisioneiras da noite e são espíritos nocturnos que vagueiam sem ninguém por perto apenas vozes que ferem quem passa em silêncio de medo e fuga sim à noite as vozes matam a tranquilidade de quem tem ainda esperança de testemunhar um novo dia ainda que fosse cinzento mas seria claro e a claridade anularia as vozes que milimetricamente ocupam o espaço da crença durante a noite agressiva e ouvem-se passos que metralham o chão sem que as sombras se expressem porque se houvesse silhuetas saberiam defender-se dessas vozes com passos que avançam em todas as direcções como se fossem telecomandadas pelo silêncio cobarde dos déspotas para esmagar as revoluções dos sublevados presos nos fios invisíveis da noite como se fossem grades construídas com a baba das vozes que penetram como peças de torturas nas suas cabeças à beira da loucura mas também agarrados à rocha da resistência que é o que faz a diferença entre rebanhos domesticados e seres despertos na escuridão contra a noite dos sentidos obscuros sim as vozes não serão invencíveis nem os passos cardados de metais ácidos porque as vozes são também os gritos de todos os que estão presos em fés anacrónicas e se querem libertar do pesadelo tecido pela baba de insectos gigantes e chegar nem que seja a rastejar ao limiar da madrugada para se agarrarem às aguas salgadas que os expiarão dos venenos sulfúricos e se juntarem à revolução das novas ideias para que a contemplação do dia festeje com amor a noite despida de vozes lancinantes e agrilhoadas à vontade de psicopatas celestiais que sobrevivem nos contornos da realidade combatendo-a para que se creia que eles são os senhores do universo e não o são nem nunca o foram e jamais serão enquanto a literatura significar liberdade nesta planície onde cavalgo sem medo do tempo nem das vozes manipuladas pelos decadentes megafones impressos cuja face é a corrupção debruada a tinta-da-china negra negra negra como a maldição que lhes cairá em cima neste território que se quer de sol permanente que ilumine os rostos vivos de vozes límpidas de várias formulações estéticas nestas areias marítimas que nos dão o espírito solar da liberdade e que a sua palavra seja o imenso deleite de quem lê os poetas sem óculos escuros

Luís Filipe Sarmento, «Rouge – Galopar»
Foto: Isabel Nolasco

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