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A região alentejana dos mármores há décadas que chora as mortes nas pedreiras. Não acidentes como a derrocada da estrada que levou cinco pessoas, mas dos trabalhadores que perdiam as vidas nos poços: “Morria muita gente, havia vezes que eram dois ou três por semana”
Source: ″Morria muita gente, às vezes 2 ou 3 por semana″ Histórias de vida e de morte esculpidas no mármore
Morria muita gente, às vezes 2 ou 3 por semana” Histórias de vida e de morte esculpidas no mármore
A região alentejana dos mármores há décadas que chora as mortes nas pedreiras. Não acidentes como a derrocada da estrada que levou cinco pessoas, mas dos trabalhadores que perdiam as vidas nos poços: “Morria muita gente, havia vezes que eram dois ou três por semana”
“Senhor Inácio Barradas é homem que tem talento
Pede noiva para casar, negou-se ao casamento
Sou homem trabalhador, onde quer que tenha andado
De alguma coisa sou merecedor e sou bom para a rapaziada,
pois trabalho nas pedreiras”
Quadra da autoria de Inácio Barradas
Inácio Barradas e João Perna caminham lado a lado pelo caminho que leva às pedreiras abandonadas onde chegaram a trabalhar em Borba. Inácio vai preocupado com as calças escuras sujas de lama que ele próprio terá de lavar, João sem largar o cachimbo, está satisfeito com o capote “moderno” sem mangas. Trocam recordações, dos tempos de gaiatos em que tomavam banho nos poços das pedreiras e no ribeiro ou de quando, já pedreiros, iam fazer serviços a outra empresa. “Naquele tempo até emprestavam a gente.” Mas também é verdade que andavam sempre à procura de uma vida melhor. “Por dez tostões, a gente mudava-se.”
Foram tempos duros em que as mulheres ficavam com o coração nas mãos quando os maridos iam trabalhar. Os homens não mostravam medo, era o trabalho que a vida lhes dava. Mas também era o trabalho que tirava vidas. E eles viram ao seu lado algumas irem embora nos poços do mármore que, naqueles tempos, contam, não iam além dos 30/40 metros em vez dos mais de 100 que agora atingem.
“Morria muita gente, havia vezes que eram dois ou três por semana. Mas era onde se ganhava mais dinheiro. Quando comecei, aos 15 anos, ganhava 24 escudos por dia“, recorda João Perna, de 71 anos.
Inácio, agora com 73 anos, chegou a ser encarregado, e ainda se lembra do dia em que apanhou um grande susto. “Achavam que eu tinha morrido. Ouvia-os dizer ‘o Inácio já se foi’. Partiu-se o cabo da amarração e a máquina saltou, mas eu fui cuspido para o lado”, recorda. “Ui, Jesus, tanta gente que morreu lá debaixo!”
As duas mortes que Manuel viu na pedreira
A mesma sorte não tiveram dois camaradas de Manuel Serra, que vive no Alandroal. Trabalhou menos tempo nas pedreiras do que João e Inácio, 11 ou 12 anos, mas assistiu a duas tragédias e perdeu um primo mais jovem. Andou em Pardais e Vila Viçosa. Uma delas foi quando uma pedra saltou do cabo e foi bater na cabeça do trabalhador. “A pedra bateu-lhe na cova do ladrão [nuca] e ele caiu de bruços em cima de um monte de areia, ficou logo morto. Nunca me esqueci dessa imagem, fui eu que o virei. Fui bombeiro uma quantidade de anos e dantes tinha coragem para tudo, hoje não tenho, começo logo a chorar.”
Mas há outra, impressionante, que descreve de forma gráfica. “Outro homem caiu dos bancos para o fundo e bateu numa pedra, os miolos ficaram logo ao lado dele, eu fui enxotar as moscas até que fosse retirado.” Esse camarada morre no dia em fazia 65 anos. Ainda lhe disseram para não ir, conta, mas era também o seu último dia de trabalho e queria despedir-se. Acabou por ficar lá.
Quando aconteciam estas desgraças, a pedreira parava de laborar até que aparecessem as autoridades. Manuel Serra, como Inácio Barradas ou João Perna garantem quem nunca tiveram medo. Não tinham talvez a noção do perigo. Nem no dia em que lhe rebentou um tiro de pólvora debaixo dos pés o fez desistir. “O Manel já está arrumado”, ouvia os colegas dizerem. E ele a tremer que nem varas verdes envolto numa nuvem de pó, que mudou a cor do fato oleado de branco para preto. “Tive uma sorte formidável, foi um milagre.”
“Quando somos jovens, somos aventureiros. Hoje não sei se era capaz de fazer o que fiz lá.” E fez coisas impensáveis, se tivermos em conta o valor de uma vida, como ir preso por cordas ao fundo da pedreira buscar uma chave ou outra ferramenta que caía.
Os cabos que se partiam e deixavam as pedras desgovernadas era, a par das quedas, a grande causa de morte nas pedreiras. “Eram poucas as pessoas que ficavam aleijadas, porque morriam logo ali”, explica César Pereira, 82 anos e “uma vida a trabalhar nas pedreiras”. Perdeu uma perna, mas não foi uma pedra que lha roubou, foi uma infeção.
No mármore trabalha também José Domingos, mas como transformador. Começou aos sete anos – de manhã na escola, à tarde na oficina. “Não é tão perigoso, mas só não fui para as pedreiras porque não arranjei. O padrasto e o tio eram das pedreiras e o tio teve a triste sorte de tantos outros que trabalhavam a esventrar a terra. Com ele, o destino foi irónico – não estava lá em baixo, mas sim dentro de uma barraca e foi ali que um pedregulho que se soltou como um tiro o atingiu na cabeça.
“A volta das 11” de João e Inácio
Voltemos a João Perna e Inácio Barradas. Estão presos às recordações e à vida dura que as pedreiras lhes davam com maquinaria que os obrigava a puxar pelo corpo. Máquinas como o crapon, que obrigava quatro e às vezes oito homens a darem à manivela para mexer os pedregulhos de toneladas em cima de barrotes ensaboados para deslizarem. Ou dos fatos que se resumiam a sacas de batata que punham por cima dos ombros e que atiravam foram quando estavam ensopadas. As botas eram das mais baratas.
Mas se era uma vida difícil, também é verdade que não faltava trabalho na região de Borba e Vila Viçosa. “Havia dias que não via o sol, mas o que ganhava ia dando para as sopas”, diz João. O amigo Inácio dá a sua achega. “Às vezes chegava lá e não conseguia mexer as mãos. Mas eu tinha uma coisa comigo. Se estava atrasado nem que fosse cinco minutos, perdia o dia. Não queria chegar quando os outros já estavam a trabalhar.”
Inácio é um homem muito emocional, há quatro meses que chora a mulher que se matou e não se conforma com isso. Recorda o destino que tantas vezes o deixou sozinho – a mãe, espanhola, morreu quando ele tinha 8 anos, aos 17 saiu de casa porque entre os quatro irmãos sentia que estava a mais na casa do pai. “Ainda fui lá bastantes vezes mas não me aceitou.”
João é mais pragmático. Ficou viúvo aos 40 anos, mas não quis voltar a casar. “O pão está muito caro!”
Os dois amigos regressam ao largo de Borba para “a volta das 11”, uma tradição que leva os homens a percorrerem os cafés para beber um mini copo de vinho e comer qualquer coisa. As desgraças, pelo menos nestes momentos, ficam para trás das costas.