é indigno viajar assim Oé-cussi-Dili

Nakroma, a falta de indignação numa viagem com poucas condições de segurança

http://noticias.sapo.tl/portugues/lusa/artigo/18217327.html

14 de Setembro de 2014, 11:22
A falta de indignação dos passageiros é o que mais surpreende na viagem do barco Nakroma, que liga a capital de Timor-Leste ao enclave do Oecússi, num percurso feito em condições pouco humanas e seguras.

O Nakroma, construído na Indonésia com dinheiro doado pela Alemanha e a navegar em Timor-Leste há cerca de sete anos, é a única ligação que o Estado timorense disponibiliza até ao enclave de Oecússi, um distrito com pouco mais de 60 mil habitantes no lado ocidental da ilha de Timor, e onde vai ser desenvolvido o Projeto de Economia Social de Mercado, liderado pelo antigo primeiro-ministro Mari Alkatiri.

O trânsito lento, na marginal, e a presença de centenas de pessoas junto ao porto de Díli significam, por norma, dia de Nakroma, o que acontece à segunda e à quinta-feira.

Ao início da tarde, os passageiros começam a juntar-se na porta que dá acesso ao embarque no Nakroma. Homens, mulheres, crianças esperam horas para conseguir entrar no barco.

A carga já foi entregue de manhã e ocupa todo o porão do navio. A entrada de passageiros é lenta e o controlo de bilhetes apertado. Há quem seja impedido de entrar pela falta de título de viagem.

Enquanto se espera que a massa humana que se aglomera no porão desague para o primeiro e segundo convés do barco, desabafam-se impaciências e contam-se histórias, memórias de outros tempos, quando fazer a viagem era pior.

“Antigamente, no outro barco, a viagem era muito pior”, recorda uma freira portuguesa, possivelmente a passageira que mais milhas acumula no Nakroma, já que chega a ir e vir no mesmo dia.

Já para Ronaldo, 14 anos, nada importa. Aquele jovem regressa a Oecússi depois da sua primeira visita à capital.

“O que mais gostei foi do centro comercial”, disse à agência Lusa Ronaldo, que também visitou o Arquivo e Museu da Resistência e o Cristo Rei e espera completar o ensino secundário para vir para Díli estudar na universidade.

Ao lado de Ronaldo, está Rui, que tem 19 anos e visitou a capital pela segunda vez. Também sonha vir para Díli, mas para ingressar nas forças de defesa.

Enquanto se fala, caminha-se, pé ante pé, devagar até se ficar numa fila, ainda mais lenta, para subir as escadas para o convés.

Depois escolhem-se lugares, ocupam-se cantos, vãos de escada e todos os pequenos espaços disponíveis e que permitam esticar as pernas e o tempo passa e o Nakroma não larga.

“Há passageiros a mais”, afirmou um homem sentado no corredor dos camarotes da tripulação.

“Já estão a contar os passageiros”, exclamou outro, mais ao fundo.

A tripulação leva mais duas horas a confirmar que todos os passageiros têm bilhete, depois é dada ordem e passados minutos o Nakroma larga as amarras, devagar, já de noite, rumo a Oecússi.

A seguir, a movimentação de passageiros é grande, estendem-se tapetes no chão, montam-se verdadeiros piqueniques, alimentam-se crianças, ajeitam-se cantos improvisados como camas para uma noite de 10 horas de viagem e passadas umas horas reina o silêncio no barco, interrompido apenas por algum toque de telemóvel, por um rádio a debitar uma música qualquer ou por sussurros dos que teimam em não dormir.

Ao início da madrugada, já é quase impossível circular no barco. Os corpos imobilizados, juntos uns aos outros, ocupam todo o chão.

A passagem até ao exterior, já que o calor no interior no navio é insuportável, é feita por entre pernas e braços adormecidos dos corpos, crianças nuas a dormir entre os pais, e os restos, o lixo, dos piqueniques.

“Não há condições. É preciso um barco novo”, disse um professor da capital, que se deslocou a Oecússi durante uma semana para um projeto-piloto para introdução de hábitos de leitura nos docentes timorenses.

Ao lado, os restantes passageiros concordam, um mais velho está preocupado: “seja o que Deus quiser”.

O Nakroma chegou a Oecússi, naquele dia, mais devagar. Ao todo levava 520 passageiros, apesar da lotação máxima ser 300. À carga dos passageiros juntaram-se 55 toneladas de arroz e 25 toneladas de açúcar.

Todos os passageiros tinham bilhete e segundo alguns passageiros há muitas pessoas no porto de Díli a vendê-los.

Apesar da falta de condições, incluindo de segurança, ninguém reclama, porque, afinal o que é preciso é chegar a Díli ou a Oecússi, enquanto o novo barco, que deverá fazer a ligação em cerca de cinco horas, não chega.

Até lá, “seja o que Deus quiser”.

@Lusa