morre JOÃO UBALDO RIBEIRO

Morre no Rio o escritor e acadêmico João Ubaldo Ribeiro, aos 73 anos

Jornalista foi vítima de embolia pulmonar na madrugada desta sexta (18).
João Ubaldo era o 7º ocupante da cadeira número 34 da ABL.

Do G1 Rio

João Ubaldo Ribeiro (Foto: Flavio Moraes/G1)João Ubaldo Ribeiro era o 7º ocupante da cadeira número 34 da ABL (Foto: Flavio Moraes/G1)

Morreu de madrugada desta sexta-feira (18), em casa, no Leblon, Zona Sul do Rio, o escritor e acadêmico João Ubaldo Ribeiro, aos 73 anos. Como mostrou o Bom Dia Rio, ele teve uma embolia pulmonar. João Ubaldo era casado e tinha quatro filhos. O corpo dele será velado a partir das 10h na Academia Brasileira de Letras (ABL), no Centro do Rio. Ainda não há informações se o velório será aberto ao público ou restrito aos familiares e amigos.

O escritor era o 7º ocupante da cadeira número 34 da Academia Brasileira de Letras. Ele foi eleito em 7 de outubro de 1993, na sucessão de Carlos Castello Branco.

JOÃO UBALDO RIBEIRO

João Ubaldo Ribeiro ganhou em 2008 o Prêmio Camões, o mais importante da literatura em língua portuguesa. Ele é autor de livros como “Sargento Getúlio”, “O sorriso dos lagartos”, “A casa dos budas ditosos” e “Viva o povo brasileiro”. Também ganhou dois prêmios Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, em 1972 e 1984, respectivamente para o melhor autor e melhor romance do ano, por ‘Sargento Getúlio’ e ‘Viva o povo brasileiro”.

Nascido em Itaparica (BA), Ribeiro viveu até os 11 anos com a família em Sergipe, onde o pai era professor e político. Passou um ano em Lisboa e um ano no Rio para, em seguida, se estabelecer em Itaparica, onde viveu aproximadamente sete anos.

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João Ubaldo também se formou bacharel em Direito, em 1962, pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), mas nunca chegou a advogar. Entre 1990 e 1991, o escritor morou em Berlim, na Alemanha, a convite do Instituto Alemão de Intercâmbio (DAAD – Deutscher Akademischer Austauschdienst).

Ele era pós-graduado em Administração Pública pela UFBA e mestre em Administração Pública e Ciência Política pela Universidade do Sul da Califórnia (USC) .

O escritor foi professor da Escola de Administração e da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia e professor da Escola de Administração da Universidade Católica de Salvador. Como jornalista, trabalhou como repórter, redator, chefe de reportagem e colunista do Jornal da Bahia; foi também colunista, editorialista e editor-chefe da Tribuna da Bahia.

Ribeiro trabalhou como colunista do jornal Frankfurter Rundschau, na Alemanha, e foi colaborador de diversos jornais e revistas no país e no exterior, entre os quais, além dos citados, Diet Zeit (Alemanha), The Times Literary Supplement (Inglaterra), O Jornal (Portugal), Jornal de Letras (Portugal), Folha de S. Paulo, O Globo, O Estado de S. Paulo, A Tarde e muitos outros.

A formação literária de João Ubaldo Ribeiro iniciou ainda nos primeiros anos de estudante. Foi um dos jovens escritores brasileiros que participaram do International Writing Program da Universidade de Iowa, nos Estados Unidos.Trabalhando na imprensa, pôde também escrever seus livros de ficção e construir uma carreira que o consagrou como romancista, cronista, jornalista e tradutor.

Obras
Os primeiros trabalhos literários de João Ubaldo Ribeiro foram publicados em diversas coletâneas, como “Reunião”, “Panorama do Conto Baiano”. Aos 21 anos de idade, escreveu o seu primeiro livro, “Setembro não tem sentido”, que ele desejava batizar como “A Semana da Pátria”, contra a opinião do editor. O segundo foi “Sargento Getúlio”, de 1971. Em 1974, publicou “Vencecavalo e o Outro Povo”, que por sua vontade se chamaria “A Guerra dos Paranaguás”.

Consagrado como um marco do romance brasileiro moderno, “Sargento Getúlio” filiou o seu autor, segundo a crítica, a uma vertente literária que sintetiza o melhor dos escritores Graciliano Ramos e Guimarães Rosa. A história é temperada com a cultura e os costumes do Nordeste brasileiro e, em particular, dos sergipanos. Esse regionalismo extremamente rico e fiel dificultou a versão do romance para o inglês, obrigando o próprio autor a fazer esse trabalho. A seu respeito pronunciaram-se, nos Estados Unidos e na França, as colunas literárias de todos os grandes jornais e revistas.

Em 1999, foi um dos escritores escolhidos em todo o mundo para dar depoimento, ao jornal francês Libération, sobre o Terceiro Milênio. E Viva o Povo Brasileiro foi o tema do exame de Agrégation, concurso para detentores de diploma de graduação na universidade francesa. Este romance e “Sargento Getúlio” constaram da maior parte das listas dos cem melhores romances brasileiros do século.

Prêmios
– Prêmio Golfinho de Ouro, do Estado do Rio de Janeiro, conferido, em 1971, pelo romance Sargento Getúlio;
– Dois prêmios Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, em 1972 e 1984, respectivamente para o Melhor Autor e Melhor Romance do Ano, pelo romances Sargento Getúlio e Viva o povo brasileiro;
– Prêmio Altamente Recomendável – Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil,1983, para Vida e Paixão de Pandonar, o Cruel ;
– Prêmio Anna Seghers, em 1996 (Mogúncia, Alemanha);
– Prêmio Die Blaue Brillenschlange (Zurique, Suíça);
– Detém a cátedra de Poetik Dozentur na Universidade de Tubigem, Alemanha (1996).
– Prêmio Lifetime Achievement Award, em 2006;
– Prêmio Camões, em 2008.

 

O escritor e acadêmico João Ubaldo Ribeiro morreu, aos 73 anos, na madrugada desta sexta-feira (18), em sua casa, no Leblon, Zona Sul do Rio. De acordo com o telejornal “Bom Dia Rio”, da TV Globo, ele teve uma embolia pulmonar. O jornalista é casado com Berenice de Carvalho Batella Ribeiro e pai do ator e ex-VJ da MTV Bento Ribeiro.Um dos grandes nomes da literatura brasileira, João Ubaldo Ribeiro é autor de livros como “Sargento Getúlio”, “O sorriso dos lagartos”, “A casa dos budas ditosos” e “Viva o povo brasileiro”. Em 2008, ele ganhou o Prêmio Camões, o mais importante da literatura em língua portuguesa. Também é vencedor de dois prêmios Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, em 1972 e 1984, respectivamente para o Melhor Autor e Melhor Romance do Ano, por “Sargento Getúlio” e “Viva o povo brasileiro”.

Pensamentos, palavras e obras


Foto de Paulo A. A. Teixeira Flor do Leblon – Rio/2002  

João Ubaldo Ribeiro,1941-2014


Em matéria de pecados, aliás em matéria de religião geral, eu sempre achei que a pior coisa é os pensamentos. Na aula de catecismo, que era depois da missa e antes do futebol, quer dizer, a gente só pecando porque não queria assistir o catecismo, nessa aula dona Maria José, com aquelas blusas dela de mangas fofolentas e os olhos piscando o tempo todo e a cara de doente, dizia que se peca por pensamentos, palavras e obras. Palavras e obras, certo, muito certo, certo. Mas pensamento é muito descontrolado, de maneira quê todo mundo tinha dificuldades nessa parte, talvez somente dona Maria José não tivesse, porque tudo o que ela pensava era catecismo.
Muitas vezes perguntei a minha mãe — e não perguntei a dona Maria José, porque o que a gente perguntava a ela, ela mandava a gente estudar e escrever uma dissertação, para ler alto no outro domingo — como é que a pessoa fazia para não pecar por pensamentos e ela me disse que bastava não pensar nem besteira nem safadagem. Ora, isso está todo mundo sabendo, a questão é que a besteira e a safadagem aparecem o tempo todo, sem ninguém chamar. Mas de fato era uma coisa muito de admirar que os crescidos todos, na hora da comunhão, iam sem pestanejar, quer dizer, não tinham pecado nem por pensamento, por que senão não iam arriscar a receber o corpo de Cristo com tudo por dentro sujo imundo de pecados. Eu não, eu sempre tive problemas, porque primeiro nunca deixava de esquecer algum pecado e na hora que saía é que eu lembrava e aí ficava com vergonha de voltar ao padre e aí ficava achando que ia comungar sujo imundíssimo. Mas minha mãe disse que não podia fazer lista de pecados, onde já se viu, que na hora o Espírito Santo ajudava, mas ele nunca me ajudou, pelo menos eu nunca notei nada. Enfrentei bastante sofrimento.

No primeiro ano, eu não tive o problema do pecado, porque a comunhão foi na Páscoa do colégio e eu era o único aluno que ainda não tinha feito comunhão, de forma que minha mãe me mandou com uma fita branca desta largura amarrada no braço e descendo com umas franjas, que eu fiquei envergonhadíssimo. Na outra mão, minha mãe mandou eu segurar uma vela também amarrada de fita e fiquei mesmo um espetáculo, de forma que me considerei fazendo penitência o tempo todo e, de qualquer jeito, só conseguia pensar na fita e na vela, uma coisa tristíssima de se ver que eu estava e todo mundo me olhando e só não dando risada porque era uma questão de comunhão. Mas ainda assim eu fiquei desconfiado e aí, na hora que o colégio todo ficou sentado na igreja, esperando a missa começar, consegui falar com dona Maria José, para saber se podia fazer uma confissão de última hora. E somente um reforço, disse eu, a senhora sabe, a pessoa vai andando, vai pecando. Palavras e obras, não, mas pensamentos sempre uma coisa ou outra vai escapando, disse eu, e ela ficou vermelhíssima. Então ela me levou até um padre alto que estava na sacristia e perguntou a ele se ele podia ouvir a confissão de última hora de um rapaz e eu ali me sentindo todo besta, com a fita e aquela vela na mão, mas eu queria estar garantido, com essas coisas não se brinca, e o padre era desses que vem logo querendo dar porrada, desses que puxam o queixo da pessoa e passam uns tapinhas na cara, não suporto. Ah, quer dizer que veio para a primeira comunhão e não se confessou, não é, falou ele, puxando minha fita que quase esculhamba tudo e me deu grande preocupação, porque minha mãe ia botar a culpa em mim e, se eu botasse a culpa no padre, ainda ia tomar um cachação. Não senhor, eu me confessei, é que eu estou com um problema. E então o padre foi mais simpático, me chamou para o canto e disse: qual é o problema? Raiva da mãe, disse eu para não perder tempo, porque a missa ia começar e, se eu não estivesse lá na frente, minha mãe ia se aborrecer. Por causa dessa fita e dessa vela, disse eu. Ah, disse o padre, dois padre-nossos. Achei barato naquela hora, rezei os dois padre-nossos, assisti a missa, comunguei e achei que estava tudo ótimo. E a inocência.

No segundo ano não tinha mais a fita nem a vela, foi um grande alívio, porém durou pouco, justamente porque, não tendo nem fita nem vela, sobrou mais espaço para pecados de pensamento e, além disso, a pessoa vai ficando mais velha e vai pecando mais, é a lei da vida. Felizmente nesse ano teve retiro no sábado e comunhão no domingo, de forma que a gente saía correndo da confissão e ia comungar, para não dar tempo de pecar por pensamento. Também Valdilon, que tem um irmão padre e deve saber dessas coisas, explicou que o camarada fecha os olhos, tapa os ouvi- dos e fica fazendo barulhos os mais altos possíveis com a boca fechada, que ressoa no ouvido e faz aquele escarcéu etc etc e a pessoa vai evitando o pecado. Com treino, acho que é possível e de fato Valdilon treinou diversos, mas eu nunca treinei porque ficava com vergonha de esperar a comunhão no meio daqueles sujeitos tudo de olho fechado, ouvido tapado e fazendo mmmnnn-mmmnnn e bzzzz-bbzzz. Mas, de qualquer maneira, essa segunda comunhão correu muito bem, porque eu comunguei em cima da confissão, saí leve, leve. Quase na certeza.

Na terceira é que foi muitíssimo pior, porque eu estava numa idade de viver pecando por pensamentos. É aí que eu até entendi por que o catecismo fala tanto nos pensamentos, é porque tem gente que se torna assim como eu me tornei: não faz nada, só pensa maus pensamentos, todos os tipos. Mesmo fazendo força, não adiantava nada. Era parar, era estar tendo maus pensamentos. Às vezes eu dizia assim, franzindo até a testa:não vou ter, não vou ter, sai pra lá, e cantando músicas alto — vestida de branco ela apareceu, trazendo na cinta as cores do céu, ave, ave, ave Maria — mas não resolvia: o mau pensamento zipt! Pronto. Nessa situação, era mais do que difícil uma boa comunhão, ainda mais que eu dei para, achar que os outros não tinham esse problema, que era tudo obra das tentações do diabo do cão, não se podia confiar em ninguém.

E teve coisas piores nesse ano. Minha irmã ia fazer primeira comunhão e minha mãe fez uma mesa especial, muito mais especial do que a minha, que nem foi especial. Quer dizer, pecado da inveja. E depois tinha de ficar em jejum e eu quase como uma bolachinha de goma, só não comendo porque meu anjo da guarda foi forte e apareceu gente na hora de pegar a bolacha. Pecado da gula, mais sacrilégio. A madrinha de minha irmã apareceu da Bahia e eu fiquei olhando para as pernas dela: conte ai mais pecados, começando de cem. Meu pai me deu dez mil-réis e deu cinco a minha irmã e pediram para eu comprar um santinho para mim e um para ela, todos os dois com meu dinheiro e eu não gostei. Pecado da avareza e mais diversos quebrados e mistos.

Quando chegou na igreja, eu já estava suando e nesse dia não era uma questão de esquecimento na confissão, nem nada disso. Cada respirada que eu dava, tome uma pecada. A missa ia andando, ia andando e eu vendo a danação chegando, até que não 3güentei mais e aproveitei que meu pai assistia missa lá de fora fumando, e minha mãe não podia gritar comigo na igreja e então disse a meu pai que queria ter uma conversa com ele de homem para homem, se ele não ia rir. Não vou rir, disse meu pai. Pois então, pois então eu quero ficar aqui na igreja até a outra missa, possa ser a missa das nove, das dez, das onze ou de meio-dia. Quero ficar para comungar depois de confessar direito. Muito bem, disse meu pai, quando voltar traga uma garrafa de clarete único da bodega de seu Barreto e volte antes de uma hora.

Minha mãe ainda quis que eu fosse com todo mundo e ainda quis muitas conversas, mas minha irmã estava com asas de anjo e tudo e tinha a madrinha altamente granfina da Bahia, de forma que eu fiquei. Confessei às nove, faltando um pouco. Pequei logo na saída, quis regressar, titubeei, fiz que ia mas não ia, acabei fazendo o sinal da cruz, rezando a penitência, assistindo a missa, mas não tive coragem de comungar, porque, na hora, eu parecia uma cabeleira pendurada de piolhos de pecados, um aspecto péssimo. Voltei, confessei às dez. Achei que, se corresse para o altar de Santo André e rezasse até a hora da comunhão, ia conseguir segurar o pecado. Mas quando fui ajoelhando no altar, veio uma onda de pensamentos de pecado e fiquei com vontade de comer um pastel com guaraná e até pensei que qualquer coisa eu dava para não estar ali e estar em outro lugar comendo um, ou dois ou três pastéis com guaraná. A missa toda eu passei pensando em comida e, quanto mais eu queria não pensar, mais eu pensava. Não comunguei, estava cada vez mais triste. Às onze, confessei rapidamente, ofereci minha fome a São Judas Tadeu e rezei cinco minutos de olhos fechados, acho que sem pecar. Mas, quando abri os olhos um minutinho, estava uma porção de moças passando lá fora para a praia e pequei, pequei, pequei! Uma fome enorme e uma vontade de chorar e então eu rezei todas as rezas que sabia e me confessei às doze horas para a missa do meio-dia e, ali ajoelhado, esperando a hora, fui sabendo que estava pecando, fui vendo aquela fieira de pecados passando por mim e até fiquei como que de fora, assistindo cinema. E nem me lembro como foi que eu me levantei e fui receber a comunhão, boiando no meio de todos aqueles pecados e, Deus me perdoe, quase tenho um engulho de arrependimento na hora da hóstia entrar em minha boca. A fome passou e acho que tive febre e até hoje não gosto de me lembrar disso, mas vivo me lembrando. Até hoje, tenho certeza de que vou para o inferno. E é só por isso que eu não quero morrer agora, porque, tirante isso, eu queria.


Texto extraído do “Livro de histórias”, Editora Nova Fronteira – Rio  de Janeiro (RJ), 1981, pág. 37.
“biblioteca Virtual”

Na morte de João Ubaldo Ribeiro, 73 anos, Prémio Camões, um dos mais importantes escritores e cronista brasileiros e de língua portuguesa,recuperamos a autobiografia que escreveu para  o JL de 12 de outubro de 2005, com o título Pré-defunto chato e reaccionário

João Ubaldo Ribeiro
12:14 Sexta feira, 18 de Julho de 2014 |
 A autobiografia de João Ubaldo Ribeiro
(1941-2014)
O escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro, de 73 anos, Prémio Camões 2008, morreu na madrugada de hoje em casa, no Rio de Janeiro, noticia online o jornal brasileiro O Globo.
Fonte da assessoria do escritor indicou ao jornal que o escritor foi vítima de embolia pulmonar, uma “morte súbita, que chocou a família”, que o acompanhava.
Nascido em 1941, na Ilha de Itaparica, Baía, fez estudos literários e de direito, que nunca chegou a exercer, entrando no jornalismo com apenas 16 anos, no Jornal da Baía.
Autobiografia João Ubaldo Ribeiro – Pré-defunto chato e reaccionário
Já é lugar-comum dizer-se que o indivíduo jovem é imortal. Sim, quando jovens somos imortais. Posso até postular que a juventude acaba no momento em que constatamos que somos mortais. Não acontece a todos à mesma altura da vida e há talvez exceções, embora escassas. Vão sucedendo mortes na família e em famílias próximas, desaparecem contemporâneos notáveis com quem nunca tivemos convivência pessoal, mas que, de certa forma, marcaram sua época de uma maneira que os livros de História não costumam re.etir, morrem amigos e, um belo dia, olhamos em torno e compreendemos que estamos condenados ao grande momento de solidão que é a morte.
Os que mais temo são velhotes insuportáveis, desses que batem recordes olímpicos aos 87 anos, fazem .lhos em raparigas (no Brasil, eu escreveria “moças”, mas, como este é um jornal português, escrevo “raparigas” -falta de carácter, claro, mas pelo menos tenho a hombridade de denunciar minha própria vilania) de 22 anos e quebram pilhas de tijolos com cutiladas de mão. É o estilo “a idade está na cabeça” e “o importante é a qualidade de vida”, postura execrável em todas as suas manifestações, desde as dentaduras esplendorosas que ostentam às entrevistas gabolas que dão na tevê, sob os olhares reverentes dos circunstantes, que invariavelmente a.rmam tratar-se de algo “muito bonito”, acto tão imprescindível quanto quali.car qualquer jantar que não consista num prego com água sem borbulhas de “opíparo” (almoço é “lauto”).
Não posso, embora me assalte grande vontade, examinar os outros tipos da rica galeria daqueles que no Brasil são chamados de coroas, ou seja, velhotes, sob algum ponto de vista. Encomendaram-me uma autobiogra.a e devo ater-me à encomenda. No ensaio que escreveria sobre os que já se sabem mortais, os autobiogra.stas teriam certamente lugar especial, pois, de modo geral, eram chatos em vida e, não satisfeitos em atanazar o semelhante durante toda a existência, persistem depois de mortos. Claro, há excepções, mas não vou citar autobiogra.a nenhuma, nem das muitas que detesto nem das poucas de que gosto.
Os romancistas que se autobiografam são duplamente imputáveis, porque, por vias tortas que ninguém entende, escrever romances é falar de si mesmo. Mais comumemente dá-se por vias indirectas, de modo que, atrapalhado pelos enredos, descrições e diálogos que seu disfarce o obriga a usar, sobra pouco espaço para o romancista falar um pouco mais de si mesmo, de maneira que ele escreve novos romances e todos, se bem esgravatados, se revelarão a mesma história básica. Mas isto não é su.ciente para os que fazem autobiogra.as, eles querem falar de si mesmos encarapitados em seus jazigos, nem a morte os silencia. Diversos, pelo menos aqui no Brasil, usam médiuns e continuam a falar, embora não se possa dizer que a qualidade do que dizem melhora com a passagem para o Além. Algo de muito traumático terão sido os trespasses, porque invariavelmente dão para escrever mal.
Mas quem sou eu para discutir tão altas questões, passemos à minha autobiogra.a.
Nasci na ilha de Itaparica, baía de Todos os Santos, Estado da Bahia, Brasil, em 23 de Janeiro de 1941. Meu pai e minha mãe se conheceram na Faculdade de Direito da Bahia, onde também acabei por formar-me. Embora não seja advogado, por ter terror a cartórios, escrivães, procuradores, juízes e assemelhados, sou bacharel em Direito. Nasci de dez meses e fui extraído a fórceps. Meu pai era filho do português João Ribeiro e da brasileira Amália.
Minha mãe era filha do coronel (não do Exército ou da Polícia, mas coronel do interior mesmo, no uso dos brasileiros rurais para designar o mandachuva) Ubaldo Osório Pimentel e de Larentina (Iaiá Pequena, ou Dona Pequena).
Meu pai começou a carreira como juiz no interior de Sergipe. Era cultíssimo e letradíssimo, muito eloquente e de excelente memória. Tinha .xação doentia em mim e nos demos mal praticamente a vida toda, embora nunca tenhamos sido inimigos. Apenas ele me aporrinhava ao extremo e eu certamente a ele. Quando ele morreu, não senti nada. Era um homem sábio, pois sustentou até a morte que eu não sabia escrever e era um fracassado que só acertava a fazer .lhos e, assim mesmo, também mal. Não tenho saudade dele, apesar de ser grato pela formação que me deu, me obrigando a estudar.
De minha mãe não falo nada. Ainda é viva e não poderá ler e, com certeza entender o que escrevo aqui. Teve uma sucessão de pequenos acidentes vasculares no cérebro e hoje vive con.nada à cama de hospital que lhe instalaram em casa. Quando a visito, geralmente parece reconhecer-me, mas temo que me confunda com meu pai ou meu irmão mais moço. Meu pai já morreu e a confusão com ele não agrada, e meu irmão nunca vai vê-la, de maneira que me inquieta um pouco essa possibilidade. Ela balbucia algumas palavras de vez em quando e ninguém sabe o que lhe vai na mente.
Comecei a escrever desde cedo. Morávamos em casarões imensos, na década de 40, e eles eram cheios de livros. Desde pequeno, me interessei por esses livros e uma de minhas primeiras lembranças era pegá-los, não para lê-los, porque não sabia, mas para ver-lhe as estampas e, principalmente, para cheirá-los. Conservo esse hábito até hoje e cheguei a ler livros não tanto por seu conteúdo, mas pelo seu cheiro. Aprecio muito dicionários velhos, que me parecem terem um odor exclusivo. Sou capaz de .car cheirando livros durante horas, com breves intervalos para uma leiturazinha de alguns minutos.
Leio dicionários também e faço jogos comigo mesmo. Se o dicionário é de uma língua estrangeira com que não tenha muita familiaridade, procuro uma palavra e se, no verbete correspondente, achar outra palavra que também desconheça, vou a essa e assim sucessivamente.
Já varei madrugadas fazendo isso, porque há inúmeras variantes desse jogo, que tenho preguiça de contar agora.
Aprendi a ler em um só dia e passei a ler famelicamente desde então. Mas, faz cerca de 20 anos, dei para ler os mesmos livros sempre, às vezes as mesmas páginas, meses a .o. Não tenho mais paciência com nada novo e acho que preciso aprender sempre, e ainda muito, com os meus clássicos, notadamente Homero (Ilíada, sou homem de Ilíada), Rabelais, Lewis Carroll, Shakespeare, Jorge de Lima, Damon Runyon (isso mesmo, ignorância de quem nunca ouviu falar), Mark Twain, Poe, Monteiro Lobato (obra infantil), Padre Manuel Bernardes, Gregório de Matos e uns pouco mais. Agora não estou lendo nada, porque estou escrevendo um livro e, no máximo, por necessidade, leio jornais, para encontrar assunto para minhas crónicas. Se ler durante a escrita, tendo a mimetizar o texto que estou lendo. Além do mais, um bom soneto às vezes me abastece um mês inteiro ou mais. Aconteceu poucas vezes, mas aconteceu.
Eu já escrevia desde que aprendi a ler, mas, no que imagino ter acontecido a todos os colegas, não sabia que ia virar escritor. Meu pai, sem me consultar, me pôs na redação de um jornal e fui repórter, redactor e, bem depois, director de redação. Por causa do jornal e da Faculdade de Direito, me envolvi com literatos e intelectuais. Sempre fui o retardado da turma, o mais abestalhado, o último a publicar e o que não arranjava mulher. Tentavam arranjá-las para mim, mas elas não queriam. Depois, a situação mudou e tive um certo sucesso, mas que nunca apagou os traumas anteriores.
Vivi em Sergipe, na Bahia, em Iowa City, em Los Angeles, em Lisboa e em Berlim. Tenho horror a ser estrangeiro, mesmo em Portugal, país do meu coração, onde tenho dois ou três amigos que considero parentes e sempre sentirei falta do Zé Cardoso Pires e do Fernando Assis Pacheco.
Os portugueses, em geral, não gostam mais dos brasileiros, me tratam mal em ruas e lojas. Então pre.ro .car na minha sala, escrevendo.
Virei escritor porque não sei fazer outra coisa. Deverei morrer, se tudo correr bem, dentro de no máximo uns 20 anos. Antes disso, serei, como talvez já tenha .cado, um pré-defunto chato e reacionário, de difícil convivência e rarefeita civilidade.
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