urbano bettencourt Publicado em Azorean Spirit. Sata Magazine, n.º 55, abril-junho 2013

Partidas e regressos

Pode um livro mudar definitivamente a vida de um homem?

Pergunta insidiosa, daquelas que só fazemos depois de ter encontrado resposta para elas, nunca eu poderia tê-la formulado na manhã baça em que Veerle me deixou no aeroporto de Bruxelas. Nesse momento, tudo parecia simples: eu partia para os Açores para investigar as relações históricas entre a Flandres e o arquipélago. Dois meses eram apenas um risco de asa sobre três ou quatro das ilhas a meio do Atlântico, tempo capaz de iluminar o rasto desses flamengos que um dia trocaram os seus lares pela incerteza de territórios ainda a inventar. Quem eram eles? Que motivos os teriam levado a essa espécie de exílio entre a Europa e a América?

A bordo, uma dezena ou dezena e meia de adolescentes quebrava a sisudez dos passageiros, quase todos com o ar compenetrado daqueles funcionários que a Europa unida envia para Bruxelas em busca de salvação para este mundo e para o outro. Acabado o tempo imposto pelas normas de segurança, alguns dos adolescentes desapertaram os cintos e começaram a circular pelos corredores, em visita de tagarelice aos que tinham decidido continuar sentados. Como se, de repente, um inesperado grupo de pássaros escapados ao bando sobrevoasse «O cambista e a sua mulher», de Massys. Mais tarde, um deles dir-me-ia, num inglês fluente, que eram alunos açorianos em regresso de uma visita de estudo ao Parlamento Europeu. Ainda tentei indagar o que sabia ele desses remotos antepassados de cujo chão estivera tão perto, mas já ele voava para outro assento, onde uma jovem de cabelo ruivo e olhos claros o recebeu com um sorriso desfraldado.

Pude por isso debruçar-me sobre as páginas de Gros temps sur l’archipel, a tradução do romance português que eu comprara anos antes e onde, afinal, tudo tinha começado. O nome de Vitorino Nemésio era-me desconhecido, mas uma leitura à vol d’oiseau do prefácio fizera-me comprar o livro. E sempre que o retomo regresso à página 159, aquela em que se deu o encontro decisivo: «Quant aux nouvelles de Belgique, j’ai été heureuse d’apprendre par toi, cher cousin, qu’on a donc fini par trouver la pierre tombale de ce pauvre Francisco Brum dans le cimetière d’Oogenbon (je ne sais si j´écris ce nom correctement). Même si la dépense est trop élevée pour qu’on puisse faire transférer ses cendres à Faial, c’est du moins une consolation de savoir où eles reposent.» Quem era este Francisco Brum que, perdido o antigo nome Bruyn, regressara à terra dos antepassados para morrer nela e mais uma vez se perder da família e dos amigos? Que mistério o seu, que me fazia repetir-lhe a viagem, mas em sentido inverso?

Não sei quantas vezes se multiplicaram já os dois meses iniciais nos Açores. Continuo a investigar, mas essa é apenas a forma decente de adiar um regresso impossível. Leio agora Mau Tempo no Canal na língua natural do romance, nas suas páginas percorro o mar, o tempo e a destas ilhas, ouço a voz da sua gente. Troquei Veerle por Margarida e os canais de Bruges pelo canal de S. Jorge. E se algum dia começarem a tratar-me por Brum, saberei, então, que perdi uma pátria para ganhar outra.

 

(Publicado em Azorean Spirit. Sata Magazine, n.º 55, abril-junho 2013)